O moedor de carne

Sabe o filme Matrix? Se ninguém te contou antes, lá vai: é inspirado na realidade humana. A sua realidade. A minha realidade. Somos todos baterias alimentando a máquina.

CAPITALPARECE MENTIRADEMOCRACIAHISTÓRIAPOLÍTICA

Alexandre Assis

5/2/20224 min ler

Melhor avisar com antecedência: este post é um tanto pessimista e não possui uma conclusão feliz e inspiradora. Continue a leitura por sua conta e risco.

Sinto informá-lo, amigo: sua vida não vale tudo aquilo que você pensa que vale. Ou o que te dizem por aí. Sabe o filme Matrix? Se ninguém te contou antes, lá vai: é inspirado na realidade humana. A sua realidade. A minha realidade. Somos todos baterias alimentando a máquina. Não de forma literal como no filme, mas a alegoria usada pelas irmãs Wachowski é muito real. Sua energia vital alimenta o funcionamento de uma máquina.

A máquina existe. E seu objetivo é claro: manter o status quo para um grupo de pessoas que reinam absolutos sobre a Terra. Ao longo dos séculos vários mecanismos foram inventados para que a máquina seguisse em seu funcionamento perverso, cruel e inexorável.

No começo tudo era pela força. Os humanos ordinários alimentavam a máquina pelo medo que ela inspirava. Pela força. Medo da morte. Questão de sobrevivência mesmo, sabe? Trabalhe a terra ou morra. Pague os tributos ou morra.

Mas a máquina percebeu a fragilidade de sua posição e logo arrumou um bom parceiro: a igreja. E em nome de um ser supremo que tudo pode, e com a promessa de vidas melhores no pós-morte, os poderosos conseguiram material para alimentar sua máquina faminta: fiéis. Estes não só obedeciam ordens e mandavam seus filhos, pais, maridos e irmãos para as guerras em nome de seu deus, como se conformavam com uma vida limitada, tendo a promessa da vida eterna no paraíso. E enquanto isso, a máquina crescia, e os poderosos consumindo recursos aparentemente infinitos.

Essa situação durou muito mais tempo. Mas também estava fadada ao fracasso. Os excessos dos poderosos, cada vez mais absurdos, e brigas, desentendimentos, inveja e vinganças entre estes mesmos poderosos exigiam cada vez mais adeptos para sua sustentação, e consequentemente eram cada vez mais visíveis, chegando a gerar desconfortos como revoltas contra igrejas e revoltas contra reis absolutistas.

Antes que a máquina acabasse danificada havia que se criar outro mecanismo para dar sequência a história.

Até aqui nada é novidade para você, com possíveis variações. O problema é que a máquina decidiu que você precisava acreditar que era dono de seu destino. E veio então a mais maquiavélica das ferramentas. A república. E junto com ela a democracia. Estes mecanismos conseguem a proeza de fazer os humanos se engajarem de forma semelhante às igrejas, acreditando em um mundo melhor e lutando por ideais.

Você agora acredita que tem direitos. Os direitos foram desenhados para te dar a ilusão de autonomia, independência e liberdade.

A máquina até te deu uma porta de entrada: a política. Mas é uma porta bem pequena, e quem passa por essa porta tem uma ilusão ainda maior de fazer parte de um movimento transformador.

Alguns que passam por essa porta podem nunca mais voltarem a ser os mesmos indivíduos que já foram um dia. Outros, serão exatamente aquilo que sempre foram.

Mas não se engane, tudo isso é parte do mesmo mecanismo, da mesma máquina, que te dá o suficiente para você acreditar, seguir em frente, enviando seus filhos para guerras, trabalhando para “melhorar de vida”, participando de cerimônias, criando entidades familiares, entidades jurídicas, trabalhando e recebendo por isso um salário, bônus, incentivos, comissões, prêmios, e, claro, dividindo tudo isso com a própria máquina, pagando seus tributos, impostos e contribuições.

Você pode pensar que estou falando de governos autoritários. Não estou.

Um governo autoritário, te usa para mover a máquina, e para isso, te diz no que você pode ou deve acreditar, regula seu corpo e sua mente. Diz o que você pode ou não fazer. Diz em que acreditar ou não. Regula a informação que você recebe. E fazem você acreditar que tudo isso é para combater inimigos imaginários e garantir seu bem-estar. 

Já um governo democrático te apresenta oportunidades. Você tem liberdade de expressão, vive numa sociedade com liberdade de imprensa, tem liberdade de religião, e, no geral tem a impressão de que você faz suas próprias escolhas. Que seu futuro é seu, e depende unicamente de suas decisões.

Porém, meu amigo, sinto informá-lo: não depende. Primeiramente, a vida é bem aleatória. Você conta com a sorte. Sorte de ter o DNA compatível com a máquina. Se você é um homem hétero, cisgênero, branco, com perfil procriador, ou uma mulher hétero, cisgênero, branca, casada e disponível para fabricar mais gente, parabéns! Você tem todo o equipamento para se encaixar na máquina e fazê-la girar. A máquina foi feita para você. Ou melhor, você foi feito para a máquina.

Se você é um pouco diferente disso, pela origem, cor da pele, orientação sexual, identidade de gênero, idade, ou simplesmente uma mulher independente (pior ainda não quer filhos), sinto muito: suas engrenagens não se encaixam bem na máquina. Você atrapalha o bom funcionamento da máquina. Para você, existe um longo e doloroso processo de sincretismo e assimilação, inexorável, mas lento, que demora gerações. E enquanto não acontece, você será isolado, exilado, excluído ou esquecido.

A máquina demora muito para se ajustar às diferenças. A máquina não abraça o progresso. A máquina não gosta de novidades. O trabalho da máquina é conservar.

O plano da máquina é desacelerar a evolução das sociedades, para um ritmo vagaroso, quase imperceptível, dando uma ilusão de crescimento contínuo, constante e de longo prazo. Por trás disso, concentra-se o poder político, militar e econômico nas mãos dos donos da máquina.

A máquina só quer sobreviver. E a gente segue alimentando a máquina moedora de carne. Com a nossa carne.