Intolerância

Um comportamento ditatorial, autoritário e maniqueísta, esse modo de ser “comigo ou contra mim” invadiu nossas vidas. Parece ter chegado para ficar.

DEMOCRACIAPOLÍTICA

Alexandre Assis

2/2/20224 min ler

Parecemos ir sempre do oito ao oitenta. É um comportamento ditatorial, autoritário e maniqueísta, esse modo de ser “comigo ou contra mim”, que invadiu nossas vidas.

Parece ter chegado para ficar. E, honrando um verdadeiro “Ensaio sobre a Cegueira”, como o de Saramago, podemos identificar de longe o mau comportamento dos outros, mas nunca o nosso mesmo.

Se eu sou da esquerda socialista sou um anjo de altruísmo e quero o melhor para a sociedade, desde que a sociedade não contenha gente rica, pois esses são demônios egoístas que merecem padecer eternamente por seus pecados do consumo e sua conivência com o capital internacional, sujo, globalizado, opressor.

Se sou da direta conservadora sou o bastião da retidão, honestidade, ética, moral e dos bons costumes, quaisquer que sejam eles, e o defensor da família. Mas só as famílias que se encaixam na minha crença de como deve ser uma família, com todos os preceitos morais ou religiosos que eu escolho aplicar à vida dos outros para classificá-los em “bons” ou “maus”.

Se sou heterossexual, casado, com filhos, tenho uma família “normal”. Minha vida está na média, não inventei uma vida diferente, então, por que outras pessoas precisam viver de uma forma diferente? Por que precisam inventar moda e fazer diferente? Ora, eu estou com a maioria, se somos maioria, estamos certos, seguimos as normas sociais, portanto somos os "normais". Por que querem nos enfiar “goela abaixo” valores anormais dessa gente diferente? Por que eu seria obrigado a ver as diferenças e, muito pior, explicá-las para os meus filhos? Aliás, nem sei como explicar. Melhor eles não terem contato com gentes diferentes ou eles também poderão se contaminar com as diferenças e virarem seres “anormais”.

Se sou homossexual, sou livre e estou exercendo meu direito à vida, o que para mim é natural. Não quero que me considerem “anormal”, sou só diferente. Mas sou normalmente incompreendido, e sinto que estão todos contra mim. Os comerciais na televisão são todos machistas, ignoram minha existência, fazem com que me sinta invisível, e mostram uma sociedade na qual eu só existo se for para fazer palhaçada, uma sociedade cheia de gente que só quer fazer com que eu me sinta mal. Em outras palavras, todos são homofóbicos e querem acabar comigo.

Se sou homem, devo me submeter à sociedade, não posso ser um macho escroto, menos ainda demonstrar qualquer sensibilidade ou outra característica que faça com que os outros me confundam com “viado”.

Se sou mulher, sou vítima da sociedade machista e misógina. Se sou branco, sou o demônio encarnado em capataz. Se sou negro, sou vítima da sociedade escravocrata.

Se sou muçulmano, sou terrorista, se sou evangélico sou ignorante, se sou católico sou incoerente. Se sou ateu sou satanista.

E assim podemos seguir indefinidamente. 

Estes são apenas exemplos. Vivemos num mundo polarizado, com os ânimos à flor da pele, com sentimentos potencializados por redes sociais descontroladas e uma falta de educação crônica.

Somos homens contra mulheres, brancos contra negros, ocidentais contra orientais, gays contra héteros, Lulistas contra Bolsonaristas (como se só existissem essas duas figuras 🙄), comunistas contra fascistas, progressistas contra reacionários, hindus contra budistas, cristãos contra judeus contra muçulmanos contra ateus.

Parece que nossas vidas sempre se resumem a uma constante luta do bem (leia-se "nós") contra o mal (leia-se "eles").

O problema é que assim estamos sempre demonizando um “lado” e santificando o outro. Ignoramos nuances e variações. Analisar opiniões, fatos e argumentos dá muito trabalho. Assim, assumimos posições. Posições irredutíveis e dogmáticas. Compartimentalizamos a vida, colocamos as pessoas em gavetinhas com etiquetinhas e quem não tem gaveta ou etiqueta não se encaixa, fica torto. Acreditamos ter total domínio da verdade. Conhecimentos muitas vezes nos faltam. E somos os melhores em aceitar, para nós ou para os outros, a possibilidade da existência de um meio-termo, uma terceira via, a possibilidade de estudar, aprender e mudar de ideia.

E quem é “bom” ou “mau”? E quem está certo ou errado? Primeiramente, devemos perceber que estes tipos descritos são só aqueles histriônicos que aparecem nas mídias mais para satisfazer o próprio ego do que para qualquer outra coisa. Em segundo lugar, devemos admitir a hipótese de que ninguém é de todo “bom”, “mau”, “certo” ou “errado”. Somos milhões de combinações.

Para desgosto de nossos pais, nascemos para levar nossas próprias vidas, com nossos próprios pensamentos, opiniões, erros e acertos, nosso próprio cérebro criativo criando, em vez de simplesmente “continuar” as vidas daqueles que nos geraram e que indubitavelmente se sentirão traídos pelas tolas ideias de continuidade que tinham ao optarem por ter filhos.

A maioria de nós está nos meios-termos. Às vezes somos radicais em uma ou outra opiniões isoladas, mas essa não é nossa regra e sim uma exceção. Infelizmente alguns de nós sucumbem ao comportamento de manada, o comportamento de turba ensandecida, e acabamos repetindo mantras que nos polarizam cada vez mais, nos aproximando de radicais com os quais, em realidade, não nos identificamos.

Contra os criadores das caixinhas, gavetinhas e etiquetinhas que marcaram estas últimas duas décadas com a intolerância, proponho uma nova ordem mundial. Proponho uma aliança de pensamentos. Proponho o desabrochar dos analistas, dos pareceres, dos estudos, das opiniões calcadas em fatos e realidades, e não em dogmas misteriosos espalhados por senhores da verdade.

E proponho que analisemos nossos erros e acertos e que nos permitamos mudar de ideia quando descobrimos que nossas ideias antigas não nos servem mais, nem nos representam corretamente.

Que venham novos anos, e que sejam governados pela moderação e pela tolerância.

E que sejamos intolerantes apenas contra a própria intolerância.